fulminato [3]

sobre a loucura. a mulher. em relação.



esse texto reage, impactado, sobre o evento de ontem com a Silvia Federici. e parte das interpelações da Giovana Xavier e da Sandra Benites. elas foram de uma importância descomunal. exatamente para podermos colocar em perspectiva as necessárias inflexões no eixo do pensamento sul/norte e no sul/sul.

isso é uma das condições primordiais – a meu ver - para a composição das forças do feminismo no Brasil hoje.

estou ainda muito tocada por um ponto específico levantado pela Sandra – que aproxima-se frontalmente de toda a minha trajetória intelectual.

ela contou-nos que na filosofia guarani nhandeva – de sua origem, a noção da saúde da mulher é totalmente dependente da saúde da cabeça. diria, com minhas palavras, que a saúde do corpo da mulher é sobre determinada pela saúde da cabeça. quer dizer: a cabeça é corpo nessa economia ‘imuno-afetiva’ da mulher.

mas ela ainda foi além e disse que ninguém fica louco sozinho. que a loucura nunca é ali entendida como um acontecimento que acomete o indivíduo. isso porque entende-se que se ‘alguém’ enlouqueceu foi porque outro ‘alguém’ o enlouqueceu. pautando na relação entre - e com tudo o que há no mundo - o acontecimento da loucura.

mais longe: responsabilizando ‘aquele’ que está na relação aonde se dá o acontecimento da loucura como feixe de forças primordial da própria loucura que acometerá ‘aquele’ que adoece – Van Gogh foi suicidado (segundo Artaud)...entendam a dificuldade para ‘traduzirmos’ isso!!! [Gullar traduziu Van Gogh o suicida...].

essa noção guarani nhandeva da loucura é altamente sofisticada. ela retira a primazia do individuo, e por conseguinte as ações de isolamento, exclusão, traição e abandono que sucedem sempre ao indivíduo que adoece.

mas e sobretudo – tal sofisticação exige colocar no centro do debate sobre a saúde (física ou mental) as relações.

de fato nós brancos e ‘civilizados’ vimos fazendo das nossas relações o poço onde colocamos: a exclusão, o racismo, o preconceito, o medo, a competição, o ódio, a traição e a inveja. até mesmo o amor está hoje ‘naturalmente’ tingido por essas disputas.  não digo que não haja isso aqui ou acolá. e que o paraíso está no Mato Grosso. nós já contribuímos o suficiente até para a destruição dos nossos pequenos ‘paraísos artificiais’.

mas o que me parece muito tocante nisso tudo é que tomar a primazia da relação e não a do sujeito, ou das novas subjetividades ou dos velhos indivíduos iria no mínimo nos exigir interrogar a nossa potência afetivo-muscular para inventar novos pactos relacionais. novos contratos. novos modos. que vistos assim deveriam ser sempre relacionais e não mais subjetivos. postos em relação esses pactos, contratos ou modos exigem serem trocados. intercambiados. exigem serem ditos. devemos poder falar deles. saber quais são.

certamente não teria me relacionado com inúmeras pessoas  - em todos os âmbitos da vida [do íntimo ao profissional] - se o pacto tivesse sido mais frontalmente assumido e discutido. negociado e/ou verbalizado.

o silêncio relacional indica o grau de abuso da/na relação.

nota-se que o silêncio masculino nas relações é, sob essa perspectiva, usufruto do privilégio dos homens. garantido nas relações com as mulheres. nós entendemos. ou devemos entender. mesmo que ele não fale...ele não ‘precisa’ falar...

a necessidade de falar, nesse caso, aponta justo para a saída de uma posição privilegiada. só não precisa falar quem já tem. e já usufrui. de tudo o que tem.

ainda muito importante: não confundir potência e primazia da relação com criação de patota. esse modo gregário de identificação é justo o que enlouquece e exclui o outro. ele estava na base do pacto fascista. entre iguais. ele não para de proliferar hoje. entre nós.

também não estamos todos juntos. já perdemos essa também. aquele pacto proposto e falido da e pela ‘humanidade’ do homem.

tampouco estamos fechados no nosso grupinho de mãos dadas. eu não estou. nesse falso convite de que estamos juntos. entre alguns. estou como Sandra Benites disse: “sem lugar”.
não me sinto representada hoje em [e nem por] nenhum lugar aonde no entanto estou.

entendi que a primazia da relação é aquilo que poderia nos deslocar disso aí. tanto do sem lugar. quanto desse histórico lugar ‘só para alguns’ ou da falácia do ‘para todos’.

nem política nem logicamente conseguimos ainda vislumbrar esse outro lugar. tal como o suicidado ele também não se ‘traduz’ ainda entre nós.

para mim fica apenas essa indicação: a potência e a primazia da relação exige-nos deslocar em relação ao outro. isto é: em relação aquele / aquilo que não conhecemos. deslocar como ir em direção à.

potência afetivo-muscular.

talvez a proliferação dessa perspectiva relacional da vida esteja na base disso que ainda tanto assusta quanto resiste a ser codificado –

das bruxas à multidão.

ainda não sabemos o que podemos - se nos colocamos verdadeiramente em relação!











Comentários